terça-feira, 4 de junho de 2013

SOBRE A MORTE E A LATINIDADE DA MORTE EM VIDA


Mais do que uma reflexão sobre a morte. Mais do que uma reflexão sobre a morte do ponto de vista ocidental. Mais do que uma reflexão sobre a morte do ponto de vista latino-americano. Mais do que uma reflexão sobre a morte do ponto de vista latino-americano cristão ou pagão. Mais do que o sagrado e o profano apenas como reflexão sobre esta morte e, sim, a mise-en-scène que, em seu diálogo com a literatura em sua vertente do realismo fantástico, expurga nossos males mais encravados na tradição da hipocrisia laica e prostituída. Mais do que uma celebração do cinismo (que ecoa perversa e cruelmente em nossos dias), a montagem de "O Velório" concentra no feminino e em suas tensões com o amor e com a morte os arquétipos do drama e do cristianismo, flagrando o que estes têm de mais intenso para emular a essência de nossa latinidade sofredora e detentora de nossa redenção sempre por vias inversas. O flerte da perversão como auto-flagelo sacro-masoquista carregado de uma culpa sem a qual não conseguiríamos existir impunemente.

Talvez por isso o expressionismo da construção cênica, do tom das interpretações e da referência ao Dia de Los Muertos mexicano como uma metáfora complexa de nossa própria miséria espiritual. Já estamos todos mortos e dançamos e celebramos a morte daquele cujo fim foi o mais espetacular de todos apenas para que possamos continuar a nos afundar cada vez mais no eterno contraceno de nossas sempre muito estudadas aparências de civilidade e polidez. Como se fôssemos todos dionisíacos em nossas alcovas-confessionários e nisso fôssemos muito mais fantásticos do que na viscosidade pesada dos dias que se arrastam para carregar nas costas todo o lixo apolíneo que nos conserva embebidos em formol em pleno passeio público das idiossincrasias sempre tão fundamentais para a continuidade de todo este teatro medíocre que representamos e com o qual talvez apenas seja possível enganar a nós mesmos por detrás da grade do tribunal de nossas penitências-buraco da fechadura-espelho dos demônios mais intestinos que carregamos sempre em segredo.

Talvez não haja melhor meio de celebrar o início da caminhada para alcançar sua primeira década de vida senão o Teatro da Neura cristalizar, através do calvário de Maria Hercília, de Dona Conceição e toda sua defesa da tradição, da estrelada Ana Maria, da ingenuidade pretensamente esperta da criada Graça e da Madre, cuja própria alcunha e o autor Antônio Nicodemo definem como "símbolo máximo da presença divina na comunidade", todos os matizes de uma existência que teima em esperar pelo eterno domingo de páscoa capaz de nos levar a salvação e que, não contente, ainda quis estendê-lo por todo um ano de lamentações e sacrilégios e penitências que mesmo a nudez translúcida dos pés descalços no solo santo e prometido do paraíso seria incapaz de nos purificar
 
Peterson Queiroz
Cineasta e diretor do Prólogo "Vigília" em O Velório.

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